Afinal, Enel pode perder a concessão em São Paulo? Entenda | Empresas

O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, determinou que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) abra um processo disciplinar contra a distribuidora de energia elétrica Enel. O processo, nas palavras do ministro, vem para “apurar as transgressões reiteradas da Enel com a população de São Paulo que podem levá-la inclusive a um processo de caducidade (cassação)”.

No ofício enviado à Aneel, o ministro Silveira afirmou que tomou tal atitude após “episódios reiterados” de interrupção do fornecimento de energia nas cidades de São Paulo que a concessionária atende. Além disso, disse que a diretoria da companhia não costuma dialogar com o poder público.

O contrato da Enel vai até 2028 e, em comunicado enviado ao Valor, a concessionária disse que “vem cumprindo integralmente com todas as obrigações contratuais e regulatórias e está implementando um plano para modernizar a estrutura da rede”.

Tanto o prefeito, Ricardo Nunes (MDB), quanto o governador Tarcisio Freitas (Republicanos), de São Paulo, destacaram que são favoráveis ao término da concessão. Nunes chegou a afirmar que o “sistema elétrico da cidade corre risco de colapsar em três anos”.

Segundo um especialista ouvido pelo Valor, a Enel pode perder a concessão da distribuição de energia elétrica das 24 cidades do estado de São Paulo, mas isso não é fácil e rápido. Uma série de requisitos precisa ser cumprida para chegar à quebra do contrato, com diversas etapas de processos administrativos que devem ser seguidas.

“O processo de perda da concessão é uma medida excepcional e extrema. Para que haja [a perda], tem que haver a clara conduta de uma das hipóteses [previstas pela regulamentação] e tem que ser garantido de qualquer maneira o direito de defesa da companhia”, resume André Edelstein, advogado que atua em casos relacionados às companhias elétricas.

Em primeiro lugar, há o contrato de concessão firmado entre a Enel e a União. Nele, há uma cláusula que impede o início do processo administrativo sem que a concessionária tenha sido notificada formalmente sobre possíveis infrações e tenha tido tempo para saná-las. Leia abaixo o trecho do contrato sobre o assunto:

“Quinta Subcláusula – O processo administrativo acima mencionado não será instaurado até que à concessionária tenha sido dado inteiro conhecimento, em detalhes, de tais infrações contratuais, bem como tempo suficiente para providenciar as correções de acordo com os termos deste contrato.”

Então, seguindo o rito, um processo administrativo precisa apontar, com detalhes, quais são os pontos insatisfatórios do serviço prestado pela companhia de energia elétrica e dar espaço de defesa à companhia, além de prazo para que as irregularidades sejam readequadas. Esse processo é regido pela Aneel, segundo definido pelo Decreto da Casa Civil nº 2.335/1997.

Já em uma resolução publicada pela Aneel, que regula os contratos do setor, o advogado Edelstein explica que há outro trecho que protege a companhia de sanções drásticas, como seria a perda da concessão — ou a caducidade do contrato, como é chamada a medida no meio jurídico.

O trecho em questão, presente na Resolução ANEEL nº 846/2019, trata da tipicidade da infração. Ou seja, nas palavras do advogado: “toda infração precisa estar descrita completamente na regulamentação. A infração precisa estar plenamente escrita para que se preveja a penalização por ela”.

As infrações previstas pela autarquia do setor no artigo 20 da resolução são:

  • I – o serviço estiver sendo prestado de forma inadequada ou deficiente, tendo por base, as
  • normas, os critérios, os indicadores e os parâmetros definidores da qualidade do serviço;
  • II – a concessionária ou permissionária descumprir cláusulas contratuais ou disposições legais
  • ou regulamentares concernentes à concessão ou permissão;
  • III – a concessionária ou permissionária paralisar o serviço ou concorrer para tanto,
  • ressalvadas as hipóteses decorrentes de caso fortuito ou força maior;
  • IV – a concessionária ou permissionária perder as condições econômicas, técnicas ou
  • operacionais para manter a adequada prestação do serviço concedido ou permitido;
  • V – a concessionária ou permissionária não cumprir as penalidades impostas por infrações,
  • nos devidos prazos;
  • VI – a concessionária ou permissionária não atender a intimação da ANEEL para regularizar a prestação do serviço; ou 180 dias, apresentar a documentação relativa à regularidade fiscal, no curso da concessão ou permissão;.
  • VII – a concessionária ou permissionária ficar inadimplente no pagamento de uso de bem
  • público ou de bonificação pela outorga;
  • VIII – houver desligamento do agente da CCEE, por inadimplemento.

Na outra ponta, no ofício enviado à Aneel, Silveira destacou que “há diversas constatações que denotam baixo desempenho na prestação do serviço de distribuição de energia elétrica pela concessionária”. Ele citou:

  1. Tempo médio de restabelecimento pior que média das demais distribuidoras e com piora nos últimos anos, mesmo tratando de área de concessão urbana e com elevada densidade de carga;
  2. Aumento considerável da quantidade de interrupções e do número de unidades consumidoras afetadas por desligamentos com duração superior a 24 horas; e,
  3. Tempo médio de preparação – que avalia a eficiência dos meios de comunicação, bem como o dimensionamento das equipes e dos fluxos de informação dos centros de operação – 95% superior à média das demais concessionárias de distribuição do estado de São Paulo entre os anos de 2022 e 2023.

“[A fala do ministro] causa muita preocupação, mas há uma série de garantias [para a Enel]”, aponta o advogado.

Antes de uma perda de concessão, portanto, é possível que a Enel receba advertência, multa ou, eventualmente, até mesmo ser obrigada a apresentar uma demonstração de resultados pela Aneel. Uma caducidade pode acontecer, mas há um processo de fiscalização que vem antes dessa medida.

Em nota para o Valor, a Enel afirmou que vem cumprindo integralmente com todas as obrigações contratuais e regulatórias e está implementando um plano para modernizar a estrutura da rede, digitalização do sistema e na ampliação dos canais de comunicação com os clientes, além da mobilização antecipada de equipes em campo em caso de contingências.

E ainda para o período 2024-2026, a companhia afirma que vai investir no Brasil US$ 3,647 bilhões (R$ 18 bilhões). Desse total, cerca de 80% serão investidos em distribuição de energia.

“A companhia informa ainda que já pagou parte das multas aplicadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e outras encontram-se em fase de recurso, seguindo trâmites normais do setor. Reitera que, nos últimos anos, fez grandes investimentos para elevar a qualidade do serviço e enfrentar os desafios por que passa o setor elétrico, com os efeitos das mudanças climáticas. Em São Paulo, desde 2018, quando assumiu a concessão, a Enel já investiu R$ 8,36 bilhões, com média de cerca de R$ 1,4 bilhão por ano, quase o dobro da média anual de R$ 800 milhões realizada pelo controlador anterior”, explica a companhia.

Fonte: valor.globo.com